Marielle Franco, Polícia Federal e Walter Braga Netto (Foto: Agência Brasil)
Por Caio de Freitas Paes, da Agência Pública - O resultado da investigação da Polícia Federal (PF) sobre o assassinato da ex-vereadora do PSOL Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes lembrou uma antiga pergunta: se o Rio de Janeiro passava por uma intervenção militar na segurança pública, o que as Forças Armadas relacionado sobre esse crime, sobre grupos milicianos e sobre outras facções criminosas que operam no estado?
A Agência Pública descobriu que relatórios e outros documentos de inteligência produzidos pelos interventores militares no Rio de Janeiro em 2018 não existem nos arquivos públicos e que nem mesmo as autoridades parecem saber totalmente o que foi descoberto à época.
POR QUE ISSO É IMPORTANTE?
A ausência de todos os documentos de inteligência produzidos pelas Forças Armadas durante a intervenção no Rio de Janeiro impactou a velocidade e a qualidade da investigação de casos sensíveis, como o assassinato de Marielle e Anderson, e prejudicou o combate ao narcotráfico.
Os materiais em questão foram elaborados com uso de tecnologias de espionagem, como softwaresde monitoramento de telefones e de integração de dados sobre indivíduos, e inclui informações sobre o avanço do narcotráfico e das milícias, a situação fundamental em áreas de atuação desses grupos e a investigação da PF sobre o caso Marielle e Anderson, que, vale lembrar, relacionado o crime a disputa pelo controle de terras na capital fluminense pela milícia. Esses conteúdos foram repassados para a Polícia Civil do Rio de Janeiro no final da intervenção, mas a polícia não confirmou a denúncia da coleta de documentos.
O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) é o responsável por guardar o legado da intervenção . O chefiado pelo general da reserva do Exército Marcos Antônio Amaro dos Santos respondeu à Pública , por meio de assessoria de imprensa e Lei de Acesso à Informação (LAI), que “todos os relatórios disponíveis estão na área Repositório Institucional” do site da intervenção . Mesmo após a insistência da reportagem sobre o destino específico do material de inteligência, a resposta continua a mesma.
Oficialmente, tanto o Exército como os governos federais, via GSI, e do Rio de Janeiro, por meio da Polícia Civil, não souberam responder quem ficou com o material de inteligência feito pelos militares entre fevereiro e dezembro de 2018, qual o volume produzido ou os temas dos relatórios revisados à época.
Em comum, o Exército e os governos federais e do Rio de Janeiro alegam não ter ficado com os documentos produzidos pela antiga Diretoria de Inteligência da intervenção, comandada por dois oficiais das Forças Armadas no período – um tenente-coronel do Exército e um capitão de fragata da Marinha. A Pública pediu, por meio da Lei de Acesso à Informação, explicação sobre o caso à Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio de Janeiro. O Órgão respondeu que “não há nada em nosso sistema referente aos documentos relatados”, em referência à lista de documentos de inteligência.
Assinada no último dia 29 de abril pelo subsecretário de Inteligência do governo do Rio de Janeiro, delegado Flávio Porto de Moura, e por seu assistente, delegado Paulo Henrique da Silva Ribeiro, uma nota afirma que a subsecretaria “não possui a informação solicitada”.
O Exército não comentou o caso, endereçando o pedido da Pública aos detentores oficiais do legado da intervenção, o GSI. Já a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio de Janeiro não respondeu. Caso se manifeste, esta reportagem será atualizada.
Militares foram usados ferramentas espiãs contra narcotráfico e milícias
Conforme apurado pela Pública , a antiga Diretoria de Inteligência da Secretaria de Segurança da intervenção teria produzido material de inteligência sobre diversos aspectos da criminalidade no Rio de Janeiro, como o poder do narcotráfico e das milícias, além de ter informações tratadas recebidas à época via Disque -Denúncia.
Para tal, a intervenção militar adquiriu e usou ferramentas de espionagem como o software brasileiro Guardião e programas da israelense Cognyte. Como relatado pela Pública e pelo portal Brasil de Fato , as Forças Armadas compram produtos do grupo israelense há anos.Segundo o jornal Folha de S.Paulo , o gabinete de intervenção militar, então comandado pelo general do Exército Walter Braga Netto, teria adquirido o software First Mile da antiga Verint, atual Cognyte do Brasil, representada comercialmente desde 2016 por Caio dos Santos Cruz, filho do general da reserva do Exército Carlos Alberto Santos Cruz.
A ferramenta do grupo israelense ganhou fama no Brasil em 2023, após suspeitas de uso ilegal por agentes ligados à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo Bolsonaro.
Como já relatado pela Pública , a PF investiga o uso da Primeira Milha pela antiga gestão da Abin, quando sob comando do aliado do clã Bolsonaro, deputado federal e atual pré-candidato a prefeito da cidade do Rio de Janeiro Alexandre Ramagem (PL).
Munida dos softwares de espionagem, a Diretoria de Inteligência da intervenção agiu no Rio de Janeiro sob o comando de dois militares. Entre fevereiro e dezembro de 2018, o então tenente-coronel do Exército Marcelo Schneider ocupava o cargo de diretor; ao fim dos trabalhos, o então capitão-de-fragata da Marinha Márcio Rosetti substituiu o posto.
Caso Marielle e Anderson entre os afetados
O desaparecimento dos relatórios da intervenção no Rio de Janeiro impactou casos como a investigação da PF sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Em depoimento prestado em outubro de 2023 à PF, o ex-secretário de Segurança da Intervenção, general do Exército Richard Fernandez Nunes, alegou ter recebido informações de inteligência antes de nomear o delegado Rivaldo Barbosa para a chefia da Polícia Civil do Rio. Barbosa hoje está preso , acusado de ser um dos arquitetos do crime.
Segundo Nunes, a “subsecretaria de inteligência [do Rio de Janeiro] contraindicou” a nomeação de Barbosa em março de 2018. De acordo com a investigação da PF, a escolha do delegado para a carga seria fruto da influência política à época do PMDB e de Domingos Brazão, acusado pela PF de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle e Anderson.
Questionado sobre a disponibilidade das informações referidas no depoimento do general, o GSI disse que tais documentos “não se acham no legado” da intervenção sob a sua tutela. Já o governo do Rio de Janeiro afirmou que “não há nada em nosso sistema referente aos documentos relatados” e especulou que “se tais documentos foram produzidos, provavelmente não foram feitos formalmente”.
A Pública apurou que uma contraindicação ao nome de Rivaldo Barbosa teria partido do subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro à época, o delegado federal Fábio Galvão da Silva Rêgo.
Galvão comandou a inteligência do estado havia sete anos. Mas ele não ficou por muito tempo na intervenção após o episódio, saindo em agosto de 2018. Como relatado pelo portal G1 , um dos principais motivos de sua saída teria sido a nomeação de Rivaldo Barbosa, mesmo após a contraindicação feita pela inteligência.
À Pública , o general Richard Nunes disse ter visto a acusação da PF contra o delegado Rivaldo Barbosa no caso Marielle e Anderson “com perplexidade”. “Foi uma nomeação muito bem recebida pelos diversos segmentos da sociedade, até pela prestígio devido à carga que ocupava, como chefe da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio”, afirmou ainda. Já Fábio Galvão disse que “não poderia comentar” o caso.